Por Ana Lúcia Ruiz Goulart em 17 de agosto de 2020
Quando iniciei nos caminhos da pesquisa, foi como se um mundo de possibilidades se abrisse diante de mim e junto dessas possibilidades, uma infinidade de questionamentos surgiram com muita força, e aquelas interrogações que já me acompanhavam desde sempre, ganharam mais e mais espaço nos meus pensamentos.
Pois bem. Alguns desses questionamentos acabam por fazer parte ou se tornam objeto da pesquisa em si e outros, apenas seguem junto com as nossas reflexões pessoais. O fato é que a gente passa a viver e respirar pesquisa, buscando, refletindo, questionando, escolhendo e percorrendo outros e novos caminhos, que sequer havíamos vislumbrado no início do percurso.
Para além disso, não tem como viver esse processo de conhecimento e aprendizado, sem considerar a nossa existência, sem questionar as nossas ações e modos de ser e estar no mundo. E foi mais ou menos nesse trilhar de escolhas e reflexões que se deu meu encontro com Buber, encontro esse que, não somente despertou meu interesse e necessidade de aprofundamento, em decorrência da pesquisa de doutorado, mas também, e principalmente, porque me propiciou um reencontro pessoal, em direção à minha própria essência.
A Educação Ambiental (EA) vem buscando ao longo de sua história, a transformação humana e social. Diversos documentos, encontros, legislações, inclusive, foram apontando fundamentos, direções e caminhos a serem seguidos para conquistar esse intento. É inegável que, enquanto campo do conhecimento, já se avançou muito. Ato político, participação, conscientização, emancipação, interdisciplinaridade, em todos os níveis e modalidade de ensino, transversalidade, perspectiva sistêmica e holística, são alguns desses apontamentos.
Mas ainda não conseguimos. Porque então, não conseguimos transformar e construir uma nova sociedade? Como humanidade, tenho a sensação que regredimos em muitos aspectos. O mundo tornou-se avesso ao outro, nos impedindo de reconhecer que somos parte de um todo, da natureza; de reconhecer os nossos semelhantes e os demais seres com quem compartilhamos a vida, e de reconhecer que somos e temos um propósito de estar no mundo. A indiferença tomou conta e enquanto não mexermos nos indivíduos e na forma como nos relacionamos com tudo e com todos, isso não será possível.
Dito isso, vejo não somente a atualidade e aplicabilidade de Buber na concretude da vida, como o seu lugar na Educação Ambiental, pela sua contribuição para formação, constituição e resgate do humano por meio do seu convite a olhar para dentro de si. As palavras de Buber renovam em mim a esperança na construção de um outro mundo, porque não é possível pensar e conceber um projeto de sociedade democrático, justo e fraterno, se não somos capazes, por exemplo, de reconhecer o outro e aceitá-lo em sua experiência de vida, em sua diferença em relação a mim.
Mordecai Martin Buber nasceu em 1878, em Viena. Filósofo, escritor e pedagogo, suas obras, além de terem influenciado diversas áreas do pensamento ocidental, como a filosofia (Gabriel Marcel), a psicologia (Carl Rogers), a hermenêutica (Paul Ricoeur) e a educação (Paulo Freire), são indissociáveis da sua vida, ou como diria Foucault (2004), sua vida é um verdadeiro caminho filosófico, coerente com o seu pensamento, uma vida dedicada ao diálogo com o mundo, reconhecendo o seu lugar.
Sua biografia é marcada por vivências peculiares, muitas delas narradas por ele mesmo, e que decidem sua forma de ser e estar no mundo, de como problematiza e se posiciona diante das questões mais profundas do ser humano e essenciais à vida. É no diálogo (na relação) que concebe a existência humana e funda suas reflexões, como saída para um mundo marcado pela intolerância e violência.
No princípio de tudo, está a relação, nos dirá Buber. Assim sendo, é a partir da relação autêntica (relação Eu-Tu), a verdadeira essência da alma humana, que nos tornamos humanos. O Eu sem o Tu é apenas uma abstração e é no encontro com o Tu que o humano fundamenta o seu existir, de tal forma que encontros significativos são capazes de forjar e fortalecer uma existência.
A ontologia buberiana da relação ou filosofia do encontro (denominada também de ontologia da vida humana) parte de três níveis de relacionamento: com a natureza, com os humanos e com o Absoluto (Deus), por meio das palavras-princípio Eu-Tu e Eu-Isso¹.É na relação que o ser de fato se humaniza em sua totalidade: o Eu só encontra possibilidade de ser Eu, no encontro com o Tu. É o Tu, condição necessária para a sua realização e para a construção de uma sociedade do entendimento.
Ora, sabemos que as relações de poder entre capital e trabalho e a lógica competitiva concebe a humanidade mediante a dominação de um ser sobre o outro, impondo um excessivo distanciamento enquanto humanidade, caracterizado pelo individualismo, pela insensibilidade e pela incerteza, desconsiderando nossa necessidade de compartilhamento e interconexão.
Contudo, nossa essência humana carrega o anseio de interligar-se. É por meio da nossa ligação com outros seres que nos realizamos enquanto indivíduos. Então, se até mesmo as nossas relações pessoais se confundem com a dinâmica de mercado, precisamos, mais do que nunca, de outra forma de existir. Sobretudo, precisamos refletir sobre nós mesmos, o nosso ser humano e o que estamos fazendo com a nossa existência neste Planeta.
Se hoje a realidade contemporânea nos impõe como imperativo ético, a emergência de uma outra lógica de vida, que passa por refletir o sentido da nossa existência humana e transformar o que está aí, diante de nós; se é cada vez mais urgente construir outras formas de ser e estar no mundo, de reinventar a vida, ao meu ver, isso não é possível sem o resgate da nossa verdadeira essência humana.
Buber não apresenta respostas prontas, mas nos traz um convite pessoal a um voltar-se para si, que nos exige uma abertura interior e uma responsabilidade existencial para com o mundo (a natureza, os outros), que exige iniciarmos por nós mesmos em direção a nossa humanização e integralidade.
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¹ Em linhas gerais, a palavra-princípio ‘Eu-Tu’ remete à atitude ontológica, como um ato essencial do humano, uma atitude de encontro entre dois parceiros, na reciprocidade e confirmação mútua. A palavra-princípio ‘Eu-Isso’ é atitude objetivante e cognoscitiva e remete à experiência e utilização.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10. ed. São Paulo: Centauro, 2001.
______________. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 2007.
FOUCAULT, Michel. Hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
SANTIAGO, Maria Betânia do Nascimento. Ética, educação e transcendência: compreendendo a formação humana na visão de Martin Buber. Caderno de Filosofia. Recife, n. 4, pp. 47-90, 2002.
Escrito por: Ana Lúcia Ruiz Goulart
Professora. Bacharel em Direito (FURG). Mestra e Doutoranda em Educação Ambiental (PPGEA/FURG).
Tema de Pesquisa: Participação Social; Políticas Públicas e Fundamentos da Educação Ambiental.